Fortaleza pode ser 122 anos mais velha que a idade oficial; entenda divergências nas datas

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Por Edvaldo Campos em 13/04/2024 às 04:18:20
O aniversário da capital, oficialmente celebrado em 13 de abril, marca o dia em que o povoado foi elevado à condição de vila, há 298 anos. Mas pelo menos duas datas anteriores são apontadas como marcos de origem da cidade. Com divergências em datas, Fortaleza poderia ser 122 anos mais velha que a idade oficial

Quando nasce uma cidade? Quando comemorar o aniversário dela? Em Fortaleza, responder a estas duas perguntas não tem sido fácil. A data celebrada oficialmente é o 13 de abril, em alusão ao dia em que o povoado foi elevado a vila em 1726. Mas nem esse processo administrativo foi tranquilo.

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O passado colonial foi de confusões entre comerciantes e militares para decidir o local da vila. Nos últimos séculos, reinou a falta de consenso entre historiadores. Isso porque eles apontam pelo menos dois marcos que fazem com que a cidade seja mais velha. Em vez de 298 anos, completados neste sábado (13), a capital poderia ter 375 anos ou até mesmo 420 anos.

As diferentes datas apontadas para o surgimento de Fortaleza:

25 de julho de 1604: construção do Forte de São Tiago, nas margens do rio Ceará

10 de abril de 1649: construção do Forte Schoonenborch, na foz do riacho Pajeú

13 de abril de 1726: criação da vila no núcleo formado em torno do Forte Schoonenborch

Na data em que Fortaleza faz aniversário no calendário municipal, o g1 relembra outros episódios que podem demarcar a origem da cidade. Os personagens dessa história estavam entre os povos originários do Brasil e os estrangeiros de Portugal, da Espanha e da Holanda.

Se começou pela Barra do Ceará, a cidade tem 420 anos

Pintura do artista holandês Frans Post mostra a região da Barra do Ceará quando foi tomada pelos holandeses em 1637

Coleção Brasiliana Itaú

Fortaleza poderia estar em um time seleto de cidades brasileiras que têm mais de 400 anos, pontua o historiador Adauto Leitão de Araújo Jr., que estuda elementos que apontam para o nascimento de Fortaleza a partir da chegada dos portugueses pela Barra do Ceará, bairro da capital.

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Foi em 1603 que a expedição do açoriano Pero Coelho começou a se estabelecer às margens do rio Ceará. A incursão pela capitania foi autorizada pelo rei espanhol Felipe II, que também governava Portugal no período da União Ibérica (1580-1640).

A ideia era lançar as bases para a ocupação em um território que não havia despertado o interesse dos europeus, mesmo um século depois da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil.

A historiografia aponta alguns fatores que deixaram a capitania do Siará Grande em segundo plano no início da colonização do Brasil: falta de atrativos econômicos, forte resistência dos povos indígenas e condições geográficas adversas, como as secas.

Representação do Forte de São Sebastião, erguido em 1612 por Martim Soares Moreno

Acervo Digital de Fortaleza

Conforme Adauto Leitão, a escolha do estuário do rio como o melhor trecho para atracar a expedição de Pero Coelho levou em conta os registros do espanhol Vicente Pinzón. O explorador já havia descrito a costa do Mucuripe até o rio Ceará em fevereiro de 1500 — antes da expedição de Cabral.

"A diferença do Pinzón para a expedição de Pero Coelho de Souza e Martim Soares Moreno é que ele não desembarcou e não fincou o marco inicial. Ele identificou a costa do Mucuripe à Barra. Isso foi fundamental pra que, não por acaso, desembarcasse ali, no estuário do rio Ceará, uma expedição para dar início à construção da sede da capitania do Ceará", comenta o pesquisador.

O historiador defende que o aniversário de Fortaleza é 25 de julho de 1604, data em que o Forte de São Tiago foi erguido. Assim, ele considera que a Barra do Ceará é o marco zero da cidade. E ressalta: isso não quer dizer que os povos indígenas não existiam ali antes disso.

Foi nas ruínas do primeiro forte, destruído pela resistência dos povos originários, que o forte de São Sebastião foi erguido na Barra. Quem liderou este segundo momento de expedição colonizadora foi o português Martim Soares Moreno. Ele já havia acompanhado a vinda de Pero Coelho e retornou em 1612.

O Pequeno Atlas do Maranhão e Grão-Pará, feito por João Teixeira Albernaz por volta de 1629, inclui o 'Forte do Siará' na região da Barra.

Reprodução/Biblioteca Nacional Digital

Conforme Adauto, os diários e as cartas do primeiro capitão-mor do Ceará mostram que ele teve uma convivência harmoniosa com os indígenas nos períodos em que esteve na capitania.

Ainda segundo o pesquisador, Moreno também trouxe de Pernambuco um grupo de pessoas negras, principalmente homens adolescentes e mulheres sem estarem na condição de escravos, para fins de povoamento.

O historiador destaca também a relevância que a região continuou tendo depois das primeiras expedições. Um destes elementos foi a instalação da primeira câmara dos vereadores do Ceará na região, em 1701.

"Para surgir uma câmara, é preciso um movimento econômico. E havia no porto por onde veio Vicente Pinzón, os portugueses e os espanhóis… Existia uma pujança naquele lugar. Aí você quebra o paradigma de que a Barra não deu certo e que não foi habitada", defende Adauto.

Marco Zero, no Bairro Barra do Ceará, em Fortaleza.

Fabiane de Paula/SVM

Para ele, o bairro continua seguindo o espírito de resistência às tentativas de apagamento de sua história, celebrando o aniversário da cidade no mês de julho.

Além de local para demarcar o Marco Zero, a Barra do Ceará conta com lugares que fazem referências ao nome do primeiro forte, como a Praça de Santiago e o Cruzeiro de Santiago, monumento doado pelo governo espanhol.

Se começou com o forte holandês, a idade é 375 anos

O Forte Schoonenborch foi construído pelos holandeses em 1649 e rebatizado pelos portugueses cinco anos depois

Biblioteca IBGE

Até a década de 1940, era praticamente um consenso que a história da cidade começava pela Barra do Ceará com Martim Soares Moreno.

No entanto, as teses defendidas pelo historiador Raimundo Girão promoveram uma mudança nesta visão: a de que a cidade, na verdade, evoluiu como núcleo urbano a partir do Forte Schoonenborch, que hoje abriga a sede da 10ª Região Militar.

Nas proximidades do riacho Pajeú, a fortificação foi erguida em 1649 pelos holandeses, enquanto eles dominaram territórios do Nordeste brasileiro. Era a segunda tentativa de ocupação holandesa no Ceará. Eles haviam sido derrotados pelos indígenas em 1644, quando dominavam o forte São Sebastião.

O nome escolhido para o forte era uma homenagem a Walter van Schoonenborch, que liderava os holandeses em Pernambuco — capitania à qual o Ceará era subordinado.

Planta do forte holandês, construído em 1649, mapeia também os marcos já ocupados pelos europeus na capitania

Acervo Digital de Fortaleza

Em 1654, os portugueses retomaram o controle da região e rebatizaram o forte para Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. E foi em torno desta fortaleza que os casebres e as estruturas do núcleo central da cidade foram se desenvolvendo.

Raimundo Girão defendeu, portanto, que o aniversário de Fortaleza deveria ser comemorado no dia 10 de abril, em alusão à construção do forte em 1649. Caso fosse aceita a data, a cidade teria hoje 375 anos. Isso considerando que as ocupações anteriores na Barra do Ceará não levaram à construção de uma estrutura urbana.

Para ele, Martim Soares Moreno poderia continuar sendo a figura aclamada pela fundação do Ceará. Mas para a capital, o fundador teria sido o capitão holandês Matias Beck.

Atribuir a origem de Fortaleza a um líder holandês não agradou os setores ligados ao catolicismo. Na década de 1970, eles resistiram a esta mudança de herói para o mito de origem da cidade: de um português católico para um holandês calvinista, praticante da doutrina que se baseou na Reforma Protestante.

"O holandês era um herege, um monstro, calvinista da mais baixa espécie, excomungado, um réprobo, e como tal, não poderia nunca ser homenageado como fundador da urbe que vive sob a proteção de Nossa Senhora. Não se procurava, nunca se procurou discutir o fato histórico, e sim, convencer da heresia, da monstruosidade do capitão flamengo. (...) Temi ser queimado na fogueira da intransigência", escreveu Raimundo Girão em livro publicado em 1972.

Apesar das divergências, os argumentos de Girão sobre a evolução da cidade a partir do forte às margens do riacho Pajeú foram corroborados por historiadores contemporâneos.

Os 'morenistas' e os 'beckistas'

Rua Conde d'Eu, uma das vias do núcleo central da cidade formado a partir do forte, em imagem da década de 1950.

Biblioteca IBGE

A polêmica sobre a origem da cidade passou a girar em torno de duas correntes: enquanto os 'morenistas' defendiam o protagonismo de Martim Soares Moreno, os 'beckistas' buscavam reconhecer o papel de Matias Beck.

Era a continuação da busca por um mito de origem. Buscar marcos para a fundação de Fortaleza e do Ceará foi um esforço dos historiadores ligados ao Instituto do Ceará, fundado em 1887.

Conforme Almir Leal de Oliveira, professor do departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e líder do grupo de pesquisa "Ceará Colonial: economia, memória e sociedade", estes estudos vieram na época das celebrações dos "300 anos do Ceará", em 1903.

"Foi uma narrativa baseada na cultura histórica do século XIX, que se baseava nos documentos mais antigos da presença dos portugueses como elemento que considerava a presença portuguesa como o principal evento histórico de origem e "marco zero" da colonização e que teria o sentido de prova jurídica da colonização", contextualiza o pesquisador.

Por um lado, ele aponta que Martim Soares Moreno foi escolhido como fundador porque Pero Coelho de Souza, que liderou a primeira expedição, não tinha os atributos de um herói. Como explica, Pero Coelho fracassou na tentativa de conquista do território e retornou ao Rio Grande tendo perdido muitos homens para a resistência indígena.

O contato com os líderes indígenas, os embates contra grupos de franceses e o período residindo no Ceará contaram a favor da figura de Moreno.

O historiador Almir Leal ressalta que as teses de Raimundo Girão que traziam Matias Beck como fundador da capital trouxeram outra reação além da resistência dos católicos. Foi a adesão à narrativa motivada pelo "brilho" ao vincular a origem da cidade à cultura holandesa.

Ele aponta, no entanto, que não há evidências suficientes para enxergar que os holandeses tenham influenciado a evolução urbana de Fortaleza.

Para ele, talvez a única destas contribuições seja a estrada aberta por eles com o trajeto do forte até a serra de Maranguape — hoje o caminho que passa pelas avenidas General Sampaio, João Pessoa e Osório de Paiva.

Pela data de criação da vila, Fortaleza tem 298 anos

Fortaleza comemora hoje o aniversário de 298 anos, conforme data incluída no calendário municipal há 30 anos

Prefeitura de Fortaleza/ Divulgação

Em 1994, uma lei municipal fixou o aniversário de Fortaleza em uma data comemorativa diferente daquelas defendidas por morenistas e beckistas. Assim, o marco oficial de criação é o dia 13 de abril de 1726. É a data de fundação da vila em torno da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção.

Mas nem mesmo essa data 'neutra' reflete um processo pacífico. É que antes da Carta Régia de 1726, veio a de 1699 para criação da primeira vila da capitania do Siará. O documento da Coroa Portuguesa decretava a elevação do povoado que se formou ao redor do forte.

Um detalhe é que a comunicação só chegou em 1700, encontrando uma sociedade de interesses conflitantes, aponta Gleudson Passos, professor do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece).

"Enquanto isso, foi decidido internamente onde é que deveria ser construído o pelourinho, que é o marco da jurisdição oficial. Os donos de fazenda e os comerciantes que tinham no Aquiraz, nas imediações do chamado Sítio do Iguape, não aceitavam porque lá o comércio era muito próspero. E Fortaleza era só um povoado onde tinha o forte, com os capitães-mores, os militares, que eram muito arrogantes", detalha Gleudson.

A "dança do pelourinho", como descreveu Raimundo Girão, era a disputa por onde ficaria a estrutura oficial da vila. O pelourinho era a coluna de pedra ou madeira, mais conhecido em algumas vilas como o lugar de aplicação de castigos para os escravos. Podia trazer também os pontos cardeais.

De acordo com Gleudson, o lugar do pelourinho também recebia investimentos. Ele vinha acompanhado de outras estruturas que simbolizavam o poder legal do estado português: o juiz ordinário e uma câmara de vereadores. Ainda na estrutura das vilas, existia o capitão-mor como o braço armado do território, responsável pela segurança.

O historiador detalha que os espaços de poder no período colonial eram ocupados pelos homens de posses, como fazendeiros, comerciantes e grandes proprietários.

Nos primeiros anos do século 18, estas estruturas foram realmente dançando, de acordo com os interesses locais, entre três lugares: Aquiraz, a Barra do Ceará e o povoado em torno do forte.

À época, a presença portuguesa no Ceará abrangia o litoral, entre a ponta do Iguape (Aquiraz) e a Barra do Cauípe (Caucaia), se interiorizando para as serras da Aratanha, de Pacatuba e Maranguape seguindo o curso dos rios, explica Almir Leal.

Um elemento foi essencial para que a fortaleza se consolidasse como vila. Foi a Confederação dos Cariris, um grande movimento de resistência dos povos indígenas para expulsar os portugueses dos seus territórios no Nordeste.

"Eles começaram a destruir fazenda, curral lá no Rio Grande do Norte. E foram subindo aqui no Ceará e foram bater lá no Aquiraz. Aí o pessoal do Aquiraz veio se refugiar aqui em Fortaleza em 1713. E disseram: 'A gente não quer que a vila seja mais lá por causa da violência e dos ataques indígenas. Aqui vocês são militares, têm poder, arma, canhão'. Em Aquiraz, não tinha isso", narra Gleudson.

Em 1726, a decisão de Portugal foi pela manutenção de dois pelourinhos: um que já existia em Aquiraz e um novo perto do forte, oficializando a vila de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção.

A Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção hoje é sede do Comando da 10ª Região Militar, no Centro

10ª Região Militar/Divulgação

A relevância de Fortaleza foi crescendo principalmente pelo enriquecimento dos comerciantes com as exportações do século XIX, suprindo o mercado internacional em momentos de crise, como a Guerra de Secessão norte-americana.

As diferentes localidades envolvendo essa origem da cidade acabaram virando um tormento para pesquisadores do século XIX que buscaram construir uma narrativa histórica, complementa o pesquisador Almir Leal.

As polêmicas nunca se pacificaram por completo. Em 2008, discussões na Câmara Municipal de Fortaleza buscavam definir se o aniversário da cidade poderia ser mudado para o dia 25 de julho, passando a reconhecer os marcos de ocupação da Barra do Ceará.

Para Almir Leal, Fortaleza segue o exemplo de outros municípios que adotam o marco de criação pelos critérios utilizados para estabelecer a governança do Império português no período colonial.

Apesar disso, o pesquisador pontua que criar uma vila era um ato que dialogava mais com a necessidade de administrar conflitos locais. Gerar um processo de urbanização ou fazer nascer uma cidade era algo que acabava ficando em segundo plano.

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Fonte: G1

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